Um velho mineiro à beira mar

OTIS
5 min readMay 9, 2023
Photo by Kianmehr Shirooyeh on Unsplash

Enquanto esperava pela conexão, comecei a ler o livro. Li a primeira página, despropositado, pensei que leria num ritmo de quem tenta matar o tempo. No comecinho, realmente fiquei voltando ao parágrafo anterior, enquanto preocupado com o horário que a conexão sairia, quanto tempo levaria para chegar ao aeroporto, o quanto teria que correr para fazer check-in, despachar bagagem, essa parafernália toda. Já no aeroporto, com a constatação de que havia me antecipado além da conta, por ansiedade muito me causada pelo meu pai (que na ocasião em que disse que pegaria o ônibus de nove horas, me aconselhou a ir uma hora mais cedo, pelo dobro do preço da tarifa).

De check-in feito e com duas horas para matar até precisar me dirigir ao portão, segui a leitura com mais afinco. O próprio autor cantarolava ao meu ouvido enquanto eu tentava conciliar duas de suas vozes ao mesmo tempo. Segui leitura, acompanhado de um café que, anos atrás me parecia os olhos da cara, mas que agora, custa o mesmo tanto que o do shopping, até atracar em um ou dois trechos na página 60. Já são três de sete capítulos lidos quando começo a arrastar minha mala pela extensão exagerada do aeroporto internacional. Não é que o aeroporto precise de tanto espaço para não tanta gente assim adentrando seus portões de uma vez só, é que as aeronaves são demasiada grandes.

Caminho e mal as percebo, seguindo minha trilha pessoal e percebendo as pessoas, observando como elas agem de formas muito peculiares, tu ia gostar de observar isso eu acho. As pessoas fazem cada coisa quando obrigadas a esperar. Não é como se alguém pudesse de fato ser produtivo quando parado assim, aguardando ser chamado para o embarque, tendo de ficar atento a cada som de alerta e mensagem de possível mudança no itinerário, no horário de embarque, atraso por conta do clima, mudança do portão, fique atento e caminhe mais a diante ou (pior) retorne trezentos metros.

E também não é como se eu estivesse voando para um cidade onde as pessoas tendem a ser produtivas o tempo todo e se medir pela produtividade que causam. Meu destino, de mim próprio, é para aqueles que decidem-se por férias. Pois após mudar de lugar e caminhar mais adiante para o novo portão de embarque do meu voo, sento e sigo leitura, mais um capítulo e meu grupo é chamado à embarcar, faço fila à contra gosto e por isso mesmo não corro para ter um bom lugar na fila, não faz diferença com lugar marcado e mala despachada, então prefiro ser o último da fila que me cabe (eu não faço filas, tu bem sabes).

Ao entrar na aeronave e me acomodar, sigo com minha leitura. Pela primeira vez na vida, não voo na janela, e justamente por não estar prestando atenção na vista da janela enquanto alçamos voo, tenho a chance de parar a leitura e perceber a reação do meu corpo à súbita mudança de altitude e compressão. Talvez seja porque, sem voar desde a pandemia, eu só tenha envelhecido e antes meu corpo não reagia assim (há muitas reações do meu corpo hoje que não me pertenciam quando antes de tudo isso). Pois sigo a leitura e mal percebo as comissárias que me oferecem água, lanche, sucos e afins. Me dirijo ao banheiro e mijo às alturas feito um deus. Percebo o quanto não há interferência no meu equilíbrio naquele banheiro minúsculo se comparado aos banheiros de ônibus de dois andares que uso quando a caminho da cidade maravilhosa. Abro os cotovelos que não chegam à boa distância antes de dar com tudo nas paredes e me pergunto como dois adultos poderiam não só caber naquele espaço como ainda performar sexualmente o que quer que fosse, e chego à conclusão que Hollywood tem mesmo seus truques desconectados da realidade.

Já caminho para o fim do capítulo quando anunciam que vamos iniciar o procedimento de aterrisagem. Outra meia hora se esvai enquanto caminho pela extensão de todo um outro aeroporto (talvez a única real desvantagem da viagem seja ter que encarar de um só vez dois aeroportos) e quando finalmente tenho minha bagagem em mãos. Atravesso um último salão do aeroporto e finalmente respiro o ar da Bahia, um ar abafado, empesteado de carburadores e combustível queimado, num dia que não se sabe nublado ou ensolarado. Sou interpelado por um, dois, cinco, sete motoristas de taxi, uber, conexões, traslados, me dou por vencido com um que não encerra seu texto e me vejo grato por não ter que esperar mais cinco minutos até conseguir um carro por aplicativo.

A viagem segue, passamos pelo túnel de bambuzais que não se pode evitar à caminho do aeroporto, vejo vias que se parecem as mesmas da minha própria cidade, o metrô suspenso do solo ao centro, comunidades periféricas ao redor, porém falha a linha do horizonte, que não se vê ao redor, efeito constante na cidade que leva seu nome. Ao passar pelo estádio de futebol, engato numa conversa de quinze minutos sobre o campeonato, a péssima atuação do time do motorista, a controversa atuação do meu próprio time, a politicagem em que se envolve os assuntos de times assim, e por aí vai.

Quando dou por mim, o motorista já parou na entrada do hotel, e nem vejo a praia ao desembarcar e empurrar a mala até à recepção. Somente ao entrar no quarto e abrir a janela que vejo, ao longe, mas tão perto, o mar de um dia nublado. Tomo um banho, batizo a chegada, desço de regata e calção, apenas um livro na mão, nenhum celular, um cartão dentro do livro, um óculos na cara, e mais nada.

Saio na recepção e finalmente o vejo, tão perto quando uma Araújo no dia a dia do idoso mineiro que me habita. Sento na areia da praia e observo o mar, calmo, beijando lentamente a quebra da praia, leio mais um capítulo, me desfaço do calção, da regata, dos óculos, entro na água e boio, olhando o céu, um avião passando mais baixo do que deveria, o tempo a se perder de vista.

Penso e acho cômico, se alguém tentar roubar minhas coisas, vai se deparar com uma regata, um calção esportivo qualquer, um par de havaianas, um óculos de sol, um livro do Chico Buarque e um cartão de um tal senhor Otávio, porque é bem sabido que tenho nome de velho, sem celular, sem nada, e acho cômico que já na minha primeira viagem sozinho, no meu primeiro momento à sós na cidade que a música tanto me interpelava a visitar, eu não passe por mais do que um velho mineiro, encerrando o último capítulo de um livro à beira mar.

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OTIS

you wouldn’t even be here without a mirrorball (stories, movies and a dark sense of humor)