Rolê de Gente Branca

Uma sátira

OTIS
3 min readFeb 8, 2023
Photo by amandazi photography on Unsplash

Acordo de um súbito, garganta seca, o corpo descoberto, frio, sonho uma maratona, um ritmo intenso, perdido no tempo, ofegante, temeroso. Tateando no escuro encontro o edredom, acendo a luz na mesa de cabeceira, bato com um dedo a tela do celular, quatro e dezessete, alta madrugada, levanto em busca da garrafa d’água, que por preguiça ao dormir deixei dentro da bolsa que levei para o clube do livro, deveria ter deixado à cabeceira.

Os três livros ainda na bolsa. Geovani Martins, o autor do livro discutido à noite passada, Conceição Evaristo, autora do livro do próximo mês, Jeferson Tenório, autor do livro não votado que comprei assim mesmo para engrossar a coleção e acabei lendo de uma sentada só.

Rolê de gente branca, de uma classe média que votou treze e faz obras de caridade, diz tratar bem a empregada, e lê autores negros contemporâneos numa curiosidade tanto voyeur quanto sádica, comprados a preço de capa numa das últimas livrarias de rua da cidade.

Eu me pergunto ainda agora se com o passar do tempo me tornei observador passivo deste realismo fantástico chamado desigualdade. De vinte pessoas, dezesseis são mulheres, majoritariamente brancas, na faixa entre quarenta-e-cinco e sessenta anos, uma única mulher preta retinta, de periferia, estagiária de vinte anos, a primeira da família a cursar uma universidade federal.

Além do organizador, eu, um outro gay que se identifica como “pardo e privilegiado”, um carioca militar de esquerda que se diz “desentendido de literatura” enquanto cita uma dúzia de autores clássicos em sua fala longuíssima, somos os únicos homens presentes.

Há uma presente fixação em discutir a linguagem do texto de Geovani. Uns acham brilhante, outros cansativo, “precisei de um dicionário”, diz uma, “muitos palavrões”, pontua outra, “porque tanta fixação em fumar maconha o tempo todo”, alguém indaga, “dá no mesmo de escrever todas as nossas pausas pra fumar praieiro”, diz o viado pardo, “nós tomamos Rivotril, remédio pra dormir, remédio pra acordar”, alguém compara, “repetitivo, longo”, uma reclama, “é a realidade deles”, todos parecem concordar.

Entre os veteranos do clube, gente mais jovem, de trinta e poucos anos, um quarteto conversador que fala aos altos cochichos enquanto outra pessoa coloca sua opinião na roda. Uma discorda e acha que fazemos pouco ao apenas não ignorar a mão que pede uma esmola, “a gente devia parar pra ouvir”, acha o texto em linguagem favelada excludente, ao final diz que só vota no livro que for escrito por uma mulher. Outra, e única que se identifica como mulher preta não retinta, diz que falamos muito “eles, deles”, quando na verdade os personagens do livro somos “nós”, desumanizados corremos o risco de tratar com desigualdade.

A palavra privilégio se ouve mais que qualquer outra, como se todos quisessem ressaltar sua consciência de classe. A preta jovem “enriquece” a todos com a única história ouvida de uma favela experimentada, à escrevivência do autor, ao relatar o corpo morto na rua de casa da periferia onde cresceu, esperando pelo rabecão por mais de cinco horas, despido de qualquer resquício de dignidade.

O autor encontrou sua voz”, alguém conclui, eu levanto Tropa de Elite e a contemporaneidade do texto, organizado em capítulos datados, com a ascensão da figura do Capitão Nascimento e do Bope, lido pela sociedade civil e midiática como a solução do “problema favela”. Mais de uma voz me fazem a réplica de que compreenderam Tropa de Elite como crítica e não acharam correto, à época, a invasão da polícia que entra pra matar na comunidade, “os projetos sociais”, um diz, “a importância de entrar para ouvir e não para salvar”, um coro.

Pontuo minha realidade periférica, minha história de “ascensão meritocrática” do pobre ao patamar de classe média baixa precária, que depende apenas de perder o emprego para retornar à estaca zero. A morte por bala perdida do personagem mais “correto” da história é chocante e triste para a maioria, morto pela polícia pacificadora, todos emocionados com o discurso da mãe como centro da vida do jovem negro e favelado. Alguém ressalta que o personagem assassinado existiu de verdade e foi uma homenagem do autor a um amigo da vida real. Eu pondero que na tevê, a mesma morte é celebrada, muitas vezes por nós mesmos que estamos naquela sala, “se a polícia matou, alguma coisa ele fez”.

A carne mais barata do mercado é a carne negra. Mercado é rolê de gente branca.

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OTIS

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