Era dia do amigo, disseram

Uma despedida

OTIS
3 min readJan 30, 2023
Photo by Ahmed Zayan on Unsplash

A primeira vez que te vi eu ainda achava que poderia estar apaixonado por você. Eu era um garoto. Aos treze anos não temos muita noção das coisas. Seu olhar me hipnotizava como ainda faz hoje, mas hoje já sei bem o que seu olhar diz.

Sentimento de orgulho.

Orgulho de quem somos, da forma como nos abraçamos em nossa vulnerabilidade e nos entregamos à vida para surpresas maiores do que nós. Orgulho de estarmos bem e em busca do próximo passo.

Você se lembra do seu primeiro cigarro, que dividi contigo no parque municipal, aquele parque grandão na rua de baixo aqui de casa.

Já fazia anos que você não vinha aqui em casa, isso porque eu passei muito tempo sem uma casa, isso porque passamos muito tempo distantes nesses quinze anos.

Quinze anos.

Eu não achei que eu teria força de ir em frente. O que lembro daquele dia no parque é de remar aquele barquinho. Você não sabe nadar e morria de medo da água entrando naquele barquinho. Ninguém nunca vai reformar aqueles barquinhos.

O sol se pôs atrás do Oton Palace. Não há mais Oton Palace. Ninguém nunca vai reformar aquele prédio.

Você me olhava como quem se despedia.

Naquele dia, seu olhar mirava em Viçosa. Eu nunca soube porque você acabou não indo pra lá.

Em setembro passado começamos a organizar a papelada, montar seu portfólio, tomar mais um café e mais um e mais um. Não poderia ser triste esse momento. Você está indo pra Bahia porque esse é o sonho e o plano do momento, foi o que trabalhamos juntos pra fazer dar certo.

Estamos parados no trânsito, o sol de rachar asfalto e um calor insuportável. Ouvimos música, a trilha das escolhas do dia do Spotify, eu tento descobrir de qual signo o Xamã está cantando só pela letra. Recebo uma mensagem. Te ligam. Estamos os dois agora empregados. Celebramos, vamos comer pastel e tomar café.

Sabemos que os cafés serão cada vez mais escassos, mas esse é o caminho.

Só você sabe há quanto tempo venho remoendo a necessidade de sair de casa, começar de novo, metade de todas as crises e todas as brigas que começavam lá em casa terminavam no seu abraço, na sua escuta.

Vem pra cá e vamos passar o domingo cochilando.

Só te ver no Natal. Não é nem possível ter você no meu aniversário, o primeiro de muitos sem você.

Mais café, não, não café, vinho. O ponto de vista é eu olhando pra minha amiga que está se despedindo. É sobre viver e celebrar esse momento. É sobre não lamentar.

É difícil? Claro que sim.

Toda mudança dói, rompe laços, e romper laços é desatar pele.

Que tal mais um café? Quando voltar no Natal, jura juradinho.

Que a caminhada te traga luz e esperança.

Amei te ver. Amei te ver bem. Amei te ver crescendo.

Vá com a coragem que nos leva pra longe de casa pra começar a restaurar o patrimônio de um lar.

Era dia do amigo, disseram. Esse eu não vou esquecer.

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OTIS

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