A vista do meio pra baixo

Porque Bojack Horseman é a melhor série original da Netflix a terminar em 2020

OTIS
9 min readNov 23, 2020
Bojack Horseman / Netflix (Divulgação)

A história do tumultuado e atormentado cavalo-humano favorito de Hollywood chegou ao fim, ou não, às vezes ele só continua vivendo longe de nossas multi-telas da gigante de streaming Netflix. Bojack Horseman, a série de animação que se tornou um grande hit e campeã de audiência, chegou ao fim, e só então eu decidi que iria assisti-la. Eu até tinha tentado ver a animação anos atrás quando foi lançada, mas não consegui dar cabo ao fato de que a história não tinha me atraído, até recentemente, quando em três semanas eu maratonei as seis temporadas e me vi preso num looping existencial maior do que eu mesmo. O sentido da vida e da morte é o tema central da série, e só pode ser tão mórbido e profundo por ser uma animação.

Eu comecei a assistir Bojack depois de ter me aventurado por The Midnight Gospel, outra série sobre a qual escrevi em outro texto, mas a primeira conversa que despertou meu interesse depois de todos os anos de negligência aconteceu em abril de 2020. Um amigo de infância, filho caçula de uma família de pastores pentecostais, se viu numa grande mudança em busca de sentido e respostas para a vida. Na época que conversamos, eu havia finalmente ido conhecer sua nova vida, numa casa no interior com seus pais, sua irmã mais velha e dois sobrinhos. Eles já vivem por lá há três anos, mas eu ainda não tinha encontrado tempo na minha agenda agitada para um escape from BH. Quando finalmente fui lá, não poderia ter sido algo mais oportuno. Era um feriado prolongado no meio da quarentena e após a confirmação de estar livre do vírus, eles me receberam de braços abertos. Lembro-me de andar pelas ruas desertas daquele minúsculo vilarejo, mal iluminado e circundado por árvores, ao som de grilos e cigarras resistentes ao fim do verão, acompanhado desse meu amigo que, assim como eu, passava por um período de severos questionamentos sobre o mundo que conhecíamos. Você cresce em igreja e em uma família cristã e um belo dia se depara com a verdade. Qual verdade? A verdade de que você não sabe quem você é, nem como você se encaixa no mundo. Foi quando, após horas de conversa, esse meu amigo me mostrou um clip de um episódio da série em que os personagens questionam a razão da existência. Suscetível, como eu estava, à uma crise depressiva paranoica, eu me abstive da curiosidade de assistir a série naquele momento, talvez um erro, pois o que eu pensava se tratar de uma filosofia niilista que poderia me levar a considerar o suicídio como válvula de escape, era na verdade existencialismo, que dizia que a vida não tem sentido, mas nunca disse que não valia a pena viver.

Esse é o segredo do que faz Bojack Horseman reverberar não apenas como uma boa comédia de animação adulta com seus animais antropomórficos e sua sátira ao modus operandi de Hollywood. Não, essa série é muito mais do que isso. E se The Midnight Gospel foi a melhor coisa que a Netflix estreou em 2020, Bojack Horseman foi a melhor coisa que ela encerrou em 2020. E encerrou no auge, em grande estilo. Vale ressaltar que a qualidade técnica da animação é fenomenal. O nível de detalhe que os animadores e designers de produção atingiram com a série é algo que a torna quase palatável, num realismo absurdo que te faz considerar a possibilidade da existência desse universo. Dito isso, antes de te mostrar minha lista de episódios favoritos, posso me concentrar naquele que me pareceu ser o ponto chave da série, seu tema central: a relação humana com a morte.

Assistindo às temporadas em uma sequência que só é possível após o final das séries, e devo dizer do quanto a série amadureceu ao longo dos anos, ficando cada vez melhor. Os temas profundos e sérios, dramas depressivos, tópicos sobre ansiedade, status quo, dependência química, relações familiares tóxicas e outros aspectos que fizeram dessa não apenas uma boa série de animação adulta, mas um excelente estudo da psique e filosofia humana em detrimento da sociedade atual globalizada. Os mais adorados episódios da série são aqueles que apresentam maior profundidade e criatividade na abordagem desses mesmos temas, utilizando de uma narrativa que nos faz bem e nos faz rir para nos fazer pensar sobre o sentido de nossas vidas, nossa capacidade para mudança e nossa maneira de ir em busca e (porque não) encontrar aquilo que mais buscamos.

E ainda que ressoem, esses pensamentos entram em contradição com grandes ensinamentos baseados em crença que tive ao longo da vida. Se não há sentido algum na vida, por que estamos vivendo? Se a morte nos dá um senso de propósito, por que desejamos tanto ser eternos? Há muita filosofia envolvida na tentativa de tocar nesses assuntos, e não vou mergulhar tão profundamente sobre eles, focando mais numa característica pessoal de vivência associada a minha derrocada da religião.

Você está certo se acha que eu saí da religião. Você está errado se acha que sabe o motivo. Meu distanciamento da igreja e da religião como instituição social se deram pelo fator humano, mas não pelo fator humano dos outros, e sim pelo meu próprio. Em 2020, me deparei com algumas decepções e crises pessoais que me levaram a questionar o motivo pelo qual eu vivia da maneira que vivia. A resposta que encontrei foi que eu estava vivendo pelos outros. Há certo mérito e até beleza em viver pelo bem das outras pessoas, mas há algo de insensato quando isso não te faz bem em troca. Não estou discutindo aqui altruísmo e boas ações, mas sim, o coração por trás daquilo que fazemos. Isso porque eu percebo que não adianta eu viver para fazer bem ao outro se não faço o bem a mim mesmo. Ame (a si próprio para então amar) o próximo como a si mesmo. E então eu me deparei com um amor de Deus que era maior do que as exigências religiosas e trouxeram algum sentido real pra minha vida, sentido em continuar vivendo e tentando ser alguém melhor, mais amável, mais caridoso, mais sensato, mais divino.

Mas como isso se alinha ao tema da série se esta fala sobre a falta de sentido na existência? Eu explico. Acontece que toda jornada que nos leva a encontrar nosso chamado propósito de vida ou sentido começa no momento em que aceitamos que a vida pode não ter sentido algum. Não se pode encontrar sentido, a menos que se esteja disposto a não procurar sem encontrá-lo. Não se pode achar Deus, a menos que se esteja disposto correr o risco de que ele não exista. E enquanto procuramos pelo sentido da existência, enxergar a vida como algo que simplesmente acontece e continua acontecendo pode ser a melhor forma de perseverar vivendo.

Às vezes a vida é uma merda e a gente morre. E outras vezes, a vida é uma merda, mas a gente continua vivendo.

A esperança é aquilo que não queremos deixar corroer com o tempo, aquilo que não queremos deixar pra trás. Haveria esperança se fossemos eternos? Haveria bondade e vontade de ser melhor? E se a morte fosse um plano desde o início?

Para aqueles que cresceram na cultura judaico-cristã, um dos principais ensinamentos é o de que a morte é fruto do erro de Adão e Eva, o que significa que, inicialmente, não haveria morte. Isso justifica porque nós, seres humanos, lidamos com tanta dificuldade quando o assunto é morte e gostamos tanto da expectativa por uma vida eterna do outro lado, ou mesmo, outras vidas deste lado. Tudo isso é parte da ideologia judaico cristã sobre o conceito da morte. O que a filosofia do existencialismo, niilismo e outras vai discutir é bem diferente. A morte tem sua importância em si mesma. É a ideia de que vamos morrer um dia que faz de nós pessoas melhores, mas não há nada de importante após isso. Tudo o que podemos ser é o que somos agora, e não tem sentido tentar encontrar felicidade ou satisfação pessoal. Olhar a vida por essa outra ótica, quando se é filho do juda-cristianismo, é um exercício pesado demais, mas necessário. E isso é algo que Bojack Horseman, a série, fez melhor do que eu.

E eu nem entrei nos aspectos sobre como a série retrata a depressão, dependência química e outras doenças e condições de saúde mental, relações sócio-culturais e a busca por satisfação pessoal em relacionamentos e carreiras de sucesso (seja lá o que for sucesso).

Mas não me resta muito agora além de te dizer quais são meus episódios favoritos. Após muita análise e reruns do show, segue minha lista dos 10 mais. Persevera comigo até o final.

Eu começo pelo décimo colocado, o excelente “Ruthie” (S4E9), que usa uma narrativa futurista imaginária para contar a história de um dia difícil na vida de Princesa Carolyn. Em nono, “Demais, cara!” (S3E11), episódio marcado por um dos acontecimentos mais importantes da série, um dos grandes motores para as temporadas seguintes (não posso revelar mais sem dar spoiler). Em oitavo, ficamos com “Fuga de Los Angeles” (S2E11), episódio no qual Bojack parece estar se acertando em viver uma vida fora de Hollywood com a família de uma velha amiga. Alguns acontecimentos desse episódio são revisitados por suas consequências em temporadas futuras. Destaque para o formato de sitcom familiar empregado à narrativa no primeiro ato.

Churros Grátis” (S5E6) ganha nossa sétima posição. Um dos mais bem escritos episódios da série, se passa num monólogo de 26 minutos do personagem principal no velório de um ente (não tão) querido. Em sexto fica “O Cliente Novo” (S6E2), que é um estudo de personagem fascinante sobre a maternidade de Princesa Carolyn, a ex-agente de Bojack, dona de sua própria empresa de gerenciamento de artistas, produtora de TV, e mãe solteira de um bebê adotivo (literalmente) de outra raça. O episódio se destaca por sua criatividade sonora e visual ao mostrar como a rotina de muitos afazeres sobrecarrega PC ao ponto de levá-la a um colapso do qual ela somente sai ao compreender que pode contar com a ajuda das pessoas ao ser redor. Ele é uma incrível continuação à história de “Ruthie”, mencionado anteriormente.

Iniciamos o Top 5 com “O Telescópio” (S1E8), melhor episódio da temporada original, podendo ser apontado como primeiro estudo de personagem da série, se passa no presente e no passado, mostrando as raízes da fama de Bojack e sua relação desgastada com seus melhores amigos de então. Em quarto lugar, “A Velha Casa do Sr. Sugarman” (S4E2), episódio que faz um estudo duplo de personagem, mostrando a infância da mãe de Bojack, Beatrice, e a origem de seus traumas, e explorando um período depressivo do personagem principal. O episódio usa blocking e staging para cruzar as duas histórias numa casa de lago pacata em dois tempos diferentes. Talvez o episódio mais difícil de posicionar na lista. O que nos leva ao pódium.

Em terceiro, “Viagem no Tempo” (S4E11). Uma monumental continuação para o nosso quarto colocado, o episódio se passa praticamente inteiro na memória demente de Beatrice, agora velha e abandonada pelo filho num asilo, enquanto nos mostra sua história trágica de vida e escolhas que levaram a seu fim. O que é mais pungente no episódio é que, após uma temporada inteira explorando a relação de mãe e filho, Bojack não tem como imaginar o que de fato se passava na mente de sua mãe, não como nós espectadores, o que nos dá um olhar mais aguçado sobre a trajetória de ambos os personagens.

Seguindo o pódium, em segundo lugar, um dos episódios mais criativos da série. Nesse mundo distópico onde animais humanoides convivem com humanos durante toda a história, há uma expansão de universo considerável em “Peixe Fora D’água” (S3E4), episódio em que Bojack vai promover um filme na cidade subaquática de Pacific Ocean. Debaixo d’água e sem poder falar, o episódio quase todo sem falas nos leva numa jornada maravilhosa e suave em torno de alguns dos medos e erros do personagem que a essa altura já conhecemos. O brilhantismo está por trás dos 23 minutos sem diálogo e a expansão de um universo subaquático belo e quase mágico.

E nosso primeiro lugar vai para (tan tan tan) o penúltimo episódio da série. Agora, eu não posso falar nada sobre a trama de “A Vista do Meio pra Baixo” (S6E15) sem dar grandes spoilers para o final da série, então vou me ater a elogiar a qualidade técnica, narrativa e de estudo de personagens e da realidade da morte que o episódio apresenta com uma maestria absoluta. Já é quase consenso entre os fãs da série que o episódio é a obra prima da animação, e não vou dizer mais nada além disso.

Se esse artigo gigantesco não te convenceu a assistir a série, tudo bem. Acho que precisava mais externar sobre minha experiência assistindo do que tentar convencer outros a assistir. Mas se você estiver convencido, vai por mim, você não vai se arrepender de maratonar a melhor série que a Netflix encerrou em 2020. Depois me conta como foi a sua vista do meio pra baixo.

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